domingo, 4 de março de 2012

Reflexos de Comportamento

Quando finalmente decidiu descansar, reclinou sua cabeça contra a poltrona e relaxou. Dois segundos depois, um forte feixe de luz ultrapassou a proteção dos seus óculos de sol e, mesmo de olhos fechados, sentiu uma pontada no globo ocular. Inclinou-se novamente para frente e olhou para o lado, indignado.

"Não é possível!", murmurou mentalmente. "Será que essa senhora não percebe o quanto está sendo inconveniente?"

Do seu lado esquerdo, sentada na poltrona da janela do avião, a senhora de 70 e todos os anos protagonizava uma cena, no mínimo, peculiar para aquele jovem jornalista: segurava o seu iPad... Não, calma. Assim não parece tão interessante, vamos reformular. A velhinha de 70 anos (e lá vai Abraham Lincoln) segurava o seu tablet de última geração no colo e vizualizava nele uma quantidade infindável de apresentações em PowerPoint.

Do pouco que o jornalista enxerido conseguiu perceber, tratava-se daquelas mensagens motivacionais típicas de "correntes de e-mail". Imaginava o bisbilhoteiro jovem, o que faria a distinta senhora, se ao final de uma das mensagens estivesse escrito: "Mande essa mensagem para 7 bilhões de contatos! Caso contrário, na sua próxima viagem de avião, a aeronave irá se desintegrar em pleno voo, a começar pela sua poltrona!"

Mal havia terminado de imaginar a insólita cena e um novo feixe de luz cegava-o momentaneamente. Como era um voo por volta das 10h da manhã, a luz do sol entrava pela janela e refletia na tela do iPad, que, quando inclinado para a direita, redirecionava o feixe contra os olhos do viajante, já quase caolho.

Minutos antes, ele lia sua revista superinteressante que havia comprado no aeroporto. Até então, a posição de leitura, com a cabeça abaixada, evitava que os feixes o atingissem "em cheio". Vez ou outra, o dito jornalista via um clarão seguido por bolinhas pretas flutuantes nas páginas da revista, mas nada grave.

Contudo, cansou-se da leitura com tamanha intermitência entre claridade e escuridão, e decidiu descansar. Foi quando o feixe de luz atravessou suas pálpebras e quase derreteu sua íris verde. Olhou para o lado e tentou entender a situação. Percebeu que também a outra senhora, do seu lado direito, estava sendo atingida pelos raios lasers de Jedi, emitidos pela "iSpada" (sorry, Steve Jobs) daquela senhora, a quem o impiedoso jornalista já classificava como "putz, totalmente sem desconfiômetro!".

Avaliou os prós e contras de uma intervenção. Decidiu agir. Tentando manter a polidez, disse à velhinha: "Oi, desculpe, a senhora poderia, por favor, fechar a sua janela? É que o sol está refletindo na gente e...". Sem precisar nem completar a frase, ela baixou a "tampa" da janela.

"Obrigado!", agradeceu, com ênfase no tom educado e cordial. "Obrigada, também˜, respondeu a senhora, carinhosamente, para espanto do jornalista. Então ela decidiu completar a surpresa com a seguinte frase: "A luz também estava me atrapalhando muito, estou até com os olhos doloridos. Não achava um jeito agradável para ler no iPad e fiquei aqui virando a tela de um lado para o outro. Mas como você estava lendo sua revista, não quis fechar a janela completamente e te deixar no escuro..."

O jornalista espertalhão percebeu, então, que perdera não apenas o sono, mas toda a razão. E ficou quieto, a filosofar, olhar fixo no teto do avião: "como é fácil pré-julgar, sem perceber quem realmente está causando todo o problema", divagou. Era mais um daqueles estresses em vão.