terça-feira, 6 de novembro de 2012

Memórias


Ao fundo, a playlist no celular era quase inaudível. Mas seu inconsciente trabalhava. Ela folheava aquelas fotos. Quantas lembranças cabem em uma música. Mais do que em mil fotografias? Momentos, realizações, sentimentos profundos e únicos. A foto não revelava, mas à sombra da luz que captara, tocava a melodia dos amados. A mesma da outra noite, do dia anterior àquela semana passada. Do papel que carregava a impressão do instantâneo, exalava seu próprio perfume. E o dele. Quantas memórias carrega uma fragrância? Mais de mil músicas? A pausa entre os acordes não revelava o cheiro de amor que lhes pertencia: o da terra umedecidas pelo orvalho das tardes do verão ardido, em novembro.

Quantas lembranças caberiam naquela música, que de repente ela ouvia. O inconsciente ainda trabalhava. O instinto tomava a liberdade do reconhecimento do que era seu. Era seu. A música soava um réquiem dos seus sentimentos mais nobres, que até aquele dia, antes do ontem que passara, viviam do pulsar infindável de dois corações unidos por memórias que hão de jamais esquecer novamente.

Folheava aquelas fotos. Quantas lembranças formam um sorriso? Mil lembranças continham-no, o mesmo que jamais imaginava tão logo cessar. Pela sinceridade: nada daquelas fotos lhe dizia coisa alguma. À playlist ressoavam gotas que já não eram de orvalho, mas molhavam a terra sob os mini-pés que ele adoravam massagear.

A quente brisa forte soprou carinhosamente os volumosos cabelos morenos. Obrigados, raios de sol invadiam a retina do olho grande, que se franzia pequenino. Quantos romances cabem num por do sol? O horizonte belo, ao meio já no relento, desfocava, submergia sob outra maré de lágrimas que subia para relembrar: ele se fora. A milésima quarta gota salgada caía sobre sua perna, deslizava pelo joelho e formava um rio marrom sobre a cor do pecado, até cair num pedaço de papel lilás.

Papel lilás? De quantas cores se forma a memória da cor preferida? As francesinhas nas unhas arranharam a camada de poeira, a catar o papelote e matar a curiosidade daqueles olhos. O inconsciente continuava a trabalhar. Cuidadosamente dobrado. Nada além de quatro palavras. Escritas à mão. Quantas lembranças carregam uma caligrafia? “Nosso sonho”, dizia a primeira linha. “Encontre-me”, dizia a segunda.

E quantos sustos carregam uma lembrança? Curioso, o sol insistia em não se por no horizonte. Curiosa, a lua cheia já se espreitava a leste. O celular voltou à mão. Na playlist, um rock esloveno dava o tom da insólita cena: fotos ao chão, dedos sujos a secar as lágrimas, um sorriso nervoso ensaiava sua redenção. Correu a casa adentro. A cachorrinha adestrada desistiu do ladrar diante daqueles passos violentos que cortaram o corredor.

Diante da porta do quarto, parou. Puxou o cartaz do AC/DC com força, as fitas adesivas cederam, sem rasgar o papel. No verso, o envelope. Nele, uma chave... Aliás, haveria de estar ali! Um uivo instantaneamente transformado em berro cortou a casa. Era felicidade. Enquanto corria novamente, em sentido contrário, lágrimas rebrotavam-lhe dos olhos grandes. Eram transparentes. As lágrimas. Não os olhos. Eram cristalinas, puras a lavar a alma da pequena morena. Pés descalços rasgavam o corredor. A cachorrinha adestrada pulou, aprontou-se para o latido... Tarde demais. A porta de vidro bateu forte.

À penumbra do quintal misturava-se o cheiro de orvalho. Deles. O celular tocava a música. Deles. Pés descalços sentiam a grama gelada, enquanto, no peito, abalos sísmicos incontínuos embalavam todo seu ser com ondas de alegria. Jogou-se à grama. Puxou a alça do alçapão secreto. Escorregou pelo tubo de pole dance, como se fora uma veterana do corpo de bombeiros. Puxou o celular. Vamos. Vamos! App de lanterna. Os dedos molhados de suor escorregavam pela tela de vidro. Pronto. “Deseja adquirir este aplicativo?”. A luz acendeu-se. E seu coração parou.

Quantas lembranças trazem uma amnésia? Levou as duas mãos à boca. Anos mais tarde, diante do pelotão de fuzilamento, ela havia de lembrar-se daquele momento macabro. Seus olhos brilhavam por ele estar ali. Sua boca tremia por ele estar ali. Seu coração disparava por ele estar ali. Apenas sua mente. Ah, aquela que contém a memória. Esta encontrava-se em tela azul. E o inconsciente trabalhava.

Correu ao encontro do amado e beijou-o como nunca, não sem antes lhe tirar a mordaça. Depois abraçou-o com todo o seu ser, não sem antes desvencilhar-lhe as mãos das algemas. Ajudou-o a levantar-se vagarosamente, não sem antes desatar suas pernas do arame farpado. E permaneceram ali, assim, parados, abraçados, o celular caído a iluminar um ponto embolorado no teto e a preencher o restante do ambiente com aquela melodia. A música deles. Até que, enfim, de súbito e não mais que subitamente, suas vozes quebraram o silêncio com um berro uníssono que ecoou por toda a vizinhança: Jägermeister nunca mais(ter)!!! 

E a cachorrinha, em pé na porta de vidro, enfim, teve motivos para ladrar.

domingo, 16 de setembro de 2012

Diálogo Automobilístico

Por Klaus Pettinger

Em plena sexta-feira Ford e Fiat se encontram na rua:


- E aí, pronto prum Weekend cheio de Adventure?


- Nada de Fiesta, cara! Preciso manter o Focus!


- Nem Uno gole?


- Não dá! Preciso ir Ká vó trocar o plano do celular.


- O dela também Doblô a tarifa? Tô pagando 500!


- Não, é que o dela ainda é EDGE e dá muito Eco.


- Melhor trocar de Linea então! Acumulou Puntos? 


- Mondeos do céu, não!


- Esquece! Tive uma Idea, vamos pegar a Strada pra praia! Já adianto 147!

- Rachamos depois, senão dá muita confusion! Precisamos Courrier, antes que chova!

- Bravo! Já é!


(Publicado originalmente no Facebook... ;p) 




terça-feira, 14 de agosto de 2012

Reencontro


Juro, não esperava. Sabia, pois. Poderia acontecer a qualquer momento. 

Passado o primeiro choque, milhões de flashes ejetavam fotografias na minha mente. Havia tempo. Muito tempo que não nos víamos. 

Não era verdadeiramente tanto. Mas parecia.

Ela estava como sempre. Morena, bela. Gostosa, sim!

Mesmo sem querer (querendo), o olhar permaneceu fixado nela. Não havia me notado, parecia distraída, lá no fundo. Mania de ficar no canto. Mais escuro. Reservado. Gélido.

Finalmente! Os olhares se cruzaram.

Não esboçou reação. O ambiente a contagiou. Fria. Calculista. Como sempre. Sabia como me atacar: fazendo nada.

Cumprimento ou não cumprimento? Anta! Demonstre maturidade, só hoje.

Sorri. Nervoso.

Ela? Nada.

Mas também não se esquivou. Permaneceu ali, à minha vista. Ao meu deleite.

À angústia da espera, misturavam-se lembranças boas. E ruins. Por que estávamos assim, separados? 

Quem desatou o poderoso nó do nosso relacionamento? Fui eu. Fomos nós. Éramos um nó. Somos sós. Foi a vida.

Espera. Eu ainda não fui lá? Anta! Filosófica. Anta filosófica. Mas anta! Auto-xingamento? Concluído.

Fui.

Então você quer saber o que eu disse a ela?

Certo. Anota aí: N-A-D-A!

Cheguei. Segurei-a por aquela cinturinha. Linda, como sempre. E fria.

Nos olhamos longamente. Dois segundos.

Aconteceu. Com a aflição de um esfomeado, nossas bocas se chocaram. Sim, chocaram-se. Com violência. Com ardência. Com perfeição.

Com a profundidade emocional que relembrou, agora sim, somente os bons e velhos tempos.

Mesmo molhado demais. Ainda que gelado. O beijo era gostoso. Muito, aliás.

Como pode? Pensei. Que delícia!

Estava satisfeito. Pela cinturinha gelada, puxei-a para trás. As bocas desenlaçaram-se.

E só se ouviu uma voz.

“Sempre ela”.

“Sempre, coca-cola”.

domingo, 29 de julho de 2012

Tempestade


FOTO: KLAUS PETTINGER
O que faz alguém gostar de tempestade? Admirar uma „chuva de relâmpagos“? O que leva um ser humano a dormir melhor enquanto houver trovões rasgando a noite inquieta? É sua capacidade de enfrentamento do medo! Definitivamente, essa não seria a melhor resposta. Apenas uma vaga afirmativa para encerrar a sequência de perguntas.

Quando criança, o pequeno klaustrofóbico tinha lá seus medos. Não apenas o de lugares apertados, mas especialmente o de dormir no escuro. Não era culpa do bicho-papão, da Bruxa do 71 ou da raposa de pelúcia, com olhar angustiante, sentada na estante. Era o medo de não enxergar nada. Só e tudo isso. Fora cego em vidas passadas, já lhe sentenciaram. Por isso, o esse trauma atual. Definitivamente, também não seria essa a melhor resposta, pensou. Fato é que o medo apertava durante as tempestades infindáveis das madrugadas de inverno, quando tudo o que mais queria era fechar os olhos e voltar a sonhar com autoramas, figurinhas de futebol ou alguma história fabulosa contada pelos pais. Seu medo mais banal e ao mesmo tempo crucial: vai “acabar” a luz.

O problema não era ser acordado por um relâmpago seguido por um trovão de avassalar a alma onírica. O problema era ser acordado por um relâmpago seguido por um trovão de avassalar a alma onírica quando a casa inteira estivesse às escuras. E a casa realmente ficava em absoluta escuridão. Tudo bem, e as luzes da rua? Não as havia. A casa-ilha, rodeada por mato por todos os lados, mal tinha uma via pública. Agora, iluminação? Nenhuma. E como era comum faltar eletricidade pós-tormentas, àquela época, anos 80, na zona rural distrital! 

Acordar, no meio da noite, com uma trovoada, abrir os olhos e não enxergar nada era a fórmula para uma irremediável crise de pânico. Inúmeras vezes se pegara já na porta do quarto, para onde correra  inconscientemente. Afoito. Por quê? Não sabia. Até granizo ele comeu, certo dia. Diziam que fazia perder o medo da chuva. Mais fácil pegar cólera, à época. Próximos passos destinavam sempre o quarto da mãe, óbvio.

Vela acesa, coração acalmado. O perigo deixou de existir. O que poderia acontecer? A vela acabar? Difícil. De repente, a pior das tempestades passava a ser gostosa. Sentimento de alivio e segurança. Duas décadas depois, o “trauma” não mais lhe atormentava. Perdeu-se em algum momento da adolescência. 

Hoje, as dúvidas não são mais cruéis. Curiosas, apenas. Como pode o mesmo ser klaustrofóbico admirar tempestades noturnas e a sequência infinita de descargas elétricas que recortam o céu e clareiam a terra? Rapidamente, capturar essas pinturas naturais em fotografias virou obsessão. Acredita até que já entende as tempestades locais, concluiu que a melhor época para fotografá-las seja entre agosto e outubro. Na madrugada destes dias, dorme menos. Para assistir seu medo de infância passar, retornar, realizar suas danças circulares sobre a região da sua casa e, finalmente, sumir. O perigo deixou de existir.

É quando a chuva começa a cair. Forte. Para ele, enfim, dormir tranquilo. 

Foto: Klaus Pettinger

sábado, 9 de junho de 2012

Investimentos

"Caro.


O amor é um investimento a fundo perdido, de um capital inicial inexistente, que se supervaloriza em curtíssimo prazo, mas só é vendido quando estiver totalmente desvalorizado, com o que sua conta passará a acumular apenas os rendimentos, que podem ser positivos e/ou negativos, sem necessariamente se equivaler em quantidade e valor.




Resumindo, se não é um mau negócio, o amor é de um risco irracional.
E por isso mesmo é tão gostoso investir em seus papéis. 


Entendeu agora, cérebro inútil? 


Caso positivo, favor liberar a conta para saque dos rendimentos positivos e compensação dos negativos.
Obrigado.
Att. Coração."

domingo, 13 de maio de 2012

Impressões maternas




Sobre ti poderia escrever livros
só de agradecimentos e orgulho.
Sobre ti poderia falar pela eternidade
só do tudo que aprendi desde a tenra idade.

Mas não há espaço suficiente, nem digno, 
que consiga abarcar, em palavras,
o que apenas você soube me ensinar.
Uma mãe em forma de professora 
Uma professora em forma de mãe.

Poderia apenas ter me dito, explicado, 
Com a paciência e o carinho característicos.
Mas, como sempre, fostes além.
Mostrastes todos os caminhos,
Através do próprio exemplo!

Desde os princípios éticos que regem meu caráter,
até a sensibilidade de lidar com as pessoas
da maneira mais humana que conheço!

Se sentes orgulho de mim, 
e eu sinto um imenso por ti,
Se se sentes feliz por mim, 
e me sinto imensamente por ti,
Se me consideras especial, 
e te considero a maior especialidade das galáxias,
Então te direi duas coisas:

Primeiro, mãe é mãe e sempre sentirá
tudo isso pelos filhotes;
Mas, sobretudo, se sentes tudo isso
Saibas que é reflexo do teu empenho incondicional 
para conosco, teus filhos!

Obrigado por ter me dado a honra 
de ser teu xerox colorido 3D
e engraçadinho desta vida!

Porque procurarei manter sempre vivas
as cores por ti impressas no papel em branco,
que tanto admira os tons fortes das tuas qualidades!

Papel que me cabe agora, já não mais tão branco,
de reconhecer e externar, entre tantas outras coisas,
que não é só impressão,
o mais profundo amor que sinto por ti,
Hab dich lieb, Meine Mama!

sábado, 21 de abril de 2012

Torneira de ideias

Com gosto de menta na boca, ainda assim não sabia o que escrever. Mantém esse costume, na esperança de sempre dar certo. Hoje não deu. Percebeu cedo que as melhores idéias lhe apareciam enquanto escovava os dentes. Frases de efeito, introduções interessantes para textos, formas inovadoras para qualquer situação do cotidiano - tudo já surgira enquanto massageava a gengiva e esterilizava a dentina. 

O motivo do fenômeno ele ainda tentava descobrir. Através da mesma metodologia – ora, se é durante o escovar que surgem os insights, seria do mesmo modus operandi que a explicação haveria de aflorar. Uma das suas teorias aponta para a maior irrigação do cérebro, pois a pia baixa o obriga a ficar naquela posição hilariamente explorada no Best-Seller “Por que homens fazem sexo e as mulheres fazem amor”. Segundo a publicação, todo homem escova os dentes com as duas pernas bem afastadas, tronco vertiginosamente inclinado para frente e bumbum arrebitado, afim de evitar qualquer sujeira além dos limites daquele esquadro. Mas, se esse fosse o motivo, filósofos orientais já teriam dito a milênios que pensar de ponta-cabeça melhoraria a criatividade. Aliás, durante uma das higienizações bucais percebeu a sorte que a humanidade teve ao não ser apresentada (ainda) a esse método “morcegal” de meditação.

Desta vez, porém, nada lhe adiantava. Escrever o que? Com que argumentação, com que propósito? Resolveu escovar os dentes novamente. Vai que... Seria a marca do creme dental? Estaria a “menta gelada” a arrefecer sua criatividade? Quando se deu conta, pensava em qualquer coisa relacionada ao Facebook, enquanto fazia embaixadinha com sua bola Reebook e praticava o movimento de “sobe e desce” da escova nos dentes frontais, há 10 metros do banheiro. “Desse jeito, jamais terás um insight digno de nota, traste”. Concluiu o enxágüe, vestiu-se e passou o perfume em forma de granada: “Esse diesel deve ser incendiário”.

Sentou-se ao seu laptop ou notebook, nunca digitou ambos no Google com “+ diferença”, para distingui-los em seus textos. Abriu o Word. Começou a escrever sobre qualquer coisa cotidiana, citou livro de auto-ajuda, citou também suas teorias mirabolantes e mostrou seu lado maluco. Gostou do texto e finalmente postou algo no seu blog, cujo nome é um trocadilho imperdoável com o do próprio autor. Satisfez a angustia de milhões e milhões de pedidos. Do seu senso de responsabilidade, do seu ego, do seu instinto criativo e, principalmente, do seu maior bálsamo, o nonsense. 

Porque escrever sobre o fato de não saber o que, não é uma idéia digna de uma caprichada escovação dental. 

domingo, 4 de março de 2012

Reflexos de Comportamento

Quando finalmente decidiu descansar, reclinou sua cabeça contra a poltrona e relaxou. Dois segundos depois, um forte feixe de luz ultrapassou a proteção dos seus óculos de sol e, mesmo de olhos fechados, sentiu uma pontada no globo ocular. Inclinou-se novamente para frente e olhou para o lado, indignado.

"Não é possível!", murmurou mentalmente. "Será que essa senhora não percebe o quanto está sendo inconveniente?"

Do seu lado esquerdo, sentada na poltrona da janela do avião, a senhora de 70 e todos os anos protagonizava uma cena, no mínimo, peculiar para aquele jovem jornalista: segurava o seu iPad... Não, calma. Assim não parece tão interessante, vamos reformular. A velhinha de 70 anos (e lá vai Abraham Lincoln) segurava o seu tablet de última geração no colo e vizualizava nele uma quantidade infindável de apresentações em PowerPoint.

Do pouco que o jornalista enxerido conseguiu perceber, tratava-se daquelas mensagens motivacionais típicas de "correntes de e-mail". Imaginava o bisbilhoteiro jovem, o que faria a distinta senhora, se ao final de uma das mensagens estivesse escrito: "Mande essa mensagem para 7 bilhões de contatos! Caso contrário, na sua próxima viagem de avião, a aeronave irá se desintegrar em pleno voo, a começar pela sua poltrona!"

Mal havia terminado de imaginar a insólita cena e um novo feixe de luz cegava-o momentaneamente. Como era um voo por volta das 10h da manhã, a luz do sol entrava pela janela e refletia na tela do iPad, que, quando inclinado para a direita, redirecionava o feixe contra os olhos do viajante, já quase caolho.

Minutos antes, ele lia sua revista superinteressante que havia comprado no aeroporto. Até então, a posição de leitura, com a cabeça abaixada, evitava que os feixes o atingissem "em cheio". Vez ou outra, o dito jornalista via um clarão seguido por bolinhas pretas flutuantes nas páginas da revista, mas nada grave.

Contudo, cansou-se da leitura com tamanha intermitência entre claridade e escuridão, e decidiu descansar. Foi quando o feixe de luz atravessou suas pálpebras e quase derreteu sua íris verde. Olhou para o lado e tentou entender a situação. Percebeu que também a outra senhora, do seu lado direito, estava sendo atingida pelos raios lasers de Jedi, emitidos pela "iSpada" (sorry, Steve Jobs) daquela senhora, a quem o impiedoso jornalista já classificava como "putz, totalmente sem desconfiômetro!".

Avaliou os prós e contras de uma intervenção. Decidiu agir. Tentando manter a polidez, disse à velhinha: "Oi, desculpe, a senhora poderia, por favor, fechar a sua janela? É que o sol está refletindo na gente e...". Sem precisar nem completar a frase, ela baixou a "tampa" da janela.

"Obrigado!", agradeceu, com ênfase no tom educado e cordial. "Obrigada, também˜, respondeu a senhora, carinhosamente, para espanto do jornalista. Então ela decidiu completar a surpresa com a seguinte frase: "A luz também estava me atrapalhando muito, estou até com os olhos doloridos. Não achava um jeito agradável para ler no iPad e fiquei aqui virando a tela de um lado para o outro. Mas como você estava lendo sua revista, não quis fechar a janela completamente e te deixar no escuro..."

O jornalista espertalhão percebeu, então, que perdera não apenas o sono, mas toda a razão. E ficou quieto, a filosofar, olhar fixo no teto do avião: "como é fácil pré-julgar, sem perceber quem realmente está causando todo o problema", divagou. Era mais um daqueles estresses em vão.