quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O frasco de ipê amarelo


O fim de tarde continuava quente, enquanto o sol apenas se enrolava, esperando a hora de trocar de expediente com sua sucessora em nova fase, a lua. O rapaz observava o espetáculo crepuscular pela janela quanto seu estômago começou a ronronar estranhamente, despertando a ira da beagle que dormia sob a mesa. Disposto a testar algo novo para acalmar seus desejos viscerais, digitou, sinicamente, “receitas fáceis, deliciosas e baratas” no Google. Ironicamente, apareceram fotos de deliciosas guloseimas intercaladas com imagens em close do inseto que toda mulher odeia. “Baratas... stupid Google”, pensou. Encontrou o que procurava: carpaccio de carne defumada, ao molho de mostarda com mel, alcaparras e rúcula. Descobriu que não tinha nem metade do que precisava, e resolveu inovar. Enquanto buscava os ingredientes na dispensa, lembrou-se que esquecera do item essencial.

Na realidade, sabia que estava em algum lugar daquela cozinha bagunçada e cheia de louça por lavar, há duas semanas e meia. Disciplina culinária já lhe passava ao largo, o que dizer, então, da mania de limpeza. Nunca a sentiu, nem sequer a brisa da sua passagem. Começou a procurar. Entre caixas de ovos e isopor do microondas que comprara há seis meses, localizou sua cadela a balouçar-se freneticamente, imaginado que finalmente chegara a vez do manjar. Lodo, ou melhor, ledo engano. Continuou a varredura. Engatinhando feito o próprio animal de estimação, já ia desistir quando finalmente topou com a verdade, nua e crua. Ajoelhado, viu brotar diante da lixeira um líquido preto. Imediatamente seu semblante recheou-se em rugas. O rio formado por aquele fluído doravante intragável exalava o cheiro de cada segundo jazido ao sabor do tempo.

Um odor que, imediata e estranhamente, lhe rendeu uma regressão à sua primeira infância. Memórias que, ainda há pouco, repousavam em coma induzido, efusivamente delegaram ao peito a missão de corroer novamente dores saradas. Ignorando as súplicas de sua beagle, que clamava por uma bisteca light, grelhada ao ponto mais, o homem fora subitamente levado ao único momento de sua infância paupérrima gravada em alta definição e som dolby surround 7.1.

Tinha quatro anos. Mais magro que o potro definhante que cambaleava sob o sol escaldante do agreste guarapuavano, o piá “mirrentinho” (leia-se mirrado) ajudava seu velho pai a catar latas no lixão da cidade. Tudo transcorria como sempre naquele fim de tarde de verão: o vento ventava frio, enquanto o sol ainda esquentava inclemente a terra do Cacique Guairacá, quando subitamente começou a chover. Como sempre, ele quis correr para se abrigar das gotas gélidas, mas o pai ordenou que levantasse a cabeça aos céus e agradecesse, orando em direção ao arco-íris que se formava de vereda, em frente às nuvens repletas de tons de cinza.

Quando concluiu o agradecimento, viu o seu pai com os olhos marejados. “É que choveu bem na minha vista, filho. Já é ruim, isso”, tentou disfarçar. Mas ao perceber o ceticismo do piá, apontou para um clarão em meio aos destroços do cotidiano urbano. Como se fora uma miragem, uma flor de ipê amarelo vertia do deserto de lixo. “Isso é um milagre, meu filho”, gritou o pai. “Busca ela pra mim, vamos!”, ordenou. Ao se aproximar, o piá percebeu se tratar de uma flor de plástico. Conhecedor do pai que tinha, resolveu inovar. Logo ao lado, encontrou um belo vidro verde, alto, de quatro lados arredondados. Era o mais belo que já havia visto em um lixão. “Colheu” a flor dos dejetos, limpou na calça imunda e colocou-a dentro do vidro. Com sorriso faceiro, braços esticados à frente, retornou e entregou o presente ao pai.

Xucro que só ele, logo viu de longe que a flor era irreal e, cansado dos desapontamentos da vida, jogou o mimo ao chão. Ativo que era, o piá correu para juntar os destroços do coração amargurado do seu velho. Primeiro, abraçou-o. Depois, foi atrás da flor inanimada de ipê. Contudo, ao chegar “de apar” do vidro, sua visão congelou sobre o líquido preto que haveria de lhe regredir àquele momento, 25 anos mais tarde. Ao longo do rio que vertia do frasco esverdeado, moscas jurássicas apoderavam-se de um inexeqüível cheiro azedo e intragável. “Isso já é gostoso, piá do céu”, disse o velho pai. Percebendo a expressão pré-descarrego gástrico do seu filho, foi logo explicando. “No meu tempo de piá, trabalhei num restaurante italiano. Pense num lugar bom de comer. Lá, sobre cada uma das mesas, havia um vidro desses. Igualzinho”, relatou. “Mas como alguém conseguia comer um troço desses, paiê?”, perguntou o piá. “Largue mão de ser burro, filho. Isso aí é um tipo de vinagre. Diz que é vinagre ‘balsame’, ‘balsâmio’, coisa assim... Loco de bom. Um dia, quando a gente estiver melhor de vida, vou comprar pra você provar”. Incrédulo, o piá segurou na mão estendida do pai, levantou-se e seguiu-o no caminho para casa.

Ao aterrissar novamente no presente, percebeu a besteira que estava fazendo. Chamou o restaurante chique da cidade e pediu dois pratos de carpaccio para viagem. Vestiu o tênis, pegou a chave, esqueceu o dinheiro, pendurou na conta a melhor garrafa de aceto balsâmico, e acionou seu celular. “Oi pai. Quer jantar comigo? O quê? Mas é claro que minha cozinha está limpa! Como assim, você duvida?! Tudo bem, pai. Estou chegando aí!”. Voltou para casa, jogou a bisteca light no potinho da beagle, olhou para aquela cozinha imunda e ficou pensativo. Resolveu inovar. Pegou o carro, passou no restaurante e depois pela praça. Colheu uma flor de ipê amarelo e colocou-a, carinhosamente, no vidro velho de vinagre balsâmico que encontrara caído atrás da lixeira da sua cozinha. Partiu para o jantar italiano na casa do seu pai. Louco de faceiro.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Textura artísitica


Foto: Klaus Pettinger

Uma pintura. A imagem naturalmente celeste tingida por tons enrubescidos pela conjectura do anoitecer. Raios solares sob prismas únicos, tanto mais diversificados em cores quanto menor a incidência de luminosidade. Espetáculos diários e despercebidos, relegados a fundos de tela, cujo primeiro plano não passa de uma janela fechada em cortinas cotidianas, um pára-brisa diante de olhos concentrado em problemas, um smartphone bloqueador de natureza, uma câmera fotográfica a colocar o espetáculo em foco. Sim, a foto contempla. Só que não. Uma máquina a capturar o tal momento já chegou a representar a boa vontade humana em parar dez segundos diante do fenômeno. Não para apreciá-lo. Mas para compartilhá-lo. Não por ser belo. Mas por gerar admiração e comoção social. A natureza continua desfocada.

Um pôr do sol na velocidade da luz é tempo demais. Questão de meia hora, entre prospectar a cabeceira da pista, embicar os raios solares paralelamente ao chão e pousar no horizonte infinito, deixando para trás o rastro de frenagem na escuridão completa. Mas, lembre-se, a velocidade da luz já é tempo demais. Tudo bem, dez segundos são suficientes para diluir nossa culpa, para mirar, focalizar e clicar o botão que ativa o jogo de espelhos artificiais em uma tela de vidro sensível (irônico!) a toques. A foto é linda, a imagem é impressionante. O sentimento que incita? Admiração e vontade de viver aquele momento. Ironia humana. “Fi-lo porque não qui-lo”, diria o poeta, contudo “far-lo-ia” por não ter de verdadeiramente fazê-lo.

E se... ? 

Cinco minutos diante de uma cachoeira e a queda d’água infinita que jamais se repete. Nas imagens capturadas, um véu pateticamente idêntico em todas as poses. A resolução da imagem, com a assimetria sutil e real apenas a união dos sentidos pode acompanhar: em profundidade visual, no jogo de luz e cores, no barulho de estática de rádio, no cheiro de terra molhada, no gosto de cerveja e na coceira de mosquito.

A quantidade de cores de um pôr do sol é incontável (exceto por Chuck Norris, que troca os toners do sol a cada 15 dias, como se sabe). O pantone celeste, porém, é capturável em foto. Agora, segue o desafios aos colegas da Getty Image e concorrentes fotografar: a profundidade do conjunto de nuvens sobrepostas por relevos e sobrepondo o sol; a textura do céu em permanente ultraje; a curvatura do horizonte fortalecida pelo dégradé de luzes; as cores rosadas das nuvens refletidas na lateral oposta do carro a passar pela imagem; as cores rosadas das nuvens refletidas na asa direita do besourão a cruzar a imagem; o pernilongo fdp que entrou pela janela em busca de jantar, enquanto o fotógrafo apreciava tudo isso. No way!

Existe uma programação diária de apresentações únicas, mágicas e improvisadas a ser apreciada de camarote. E com o acessório da moda: a imagem em 3D. Sem óculos ridículos, aliás. Porque nascemos com a melhor lente já produzida. Que está apenas cansada demais. Ou míope. Ou desfocada.

sábado, 6 de julho de 2013

Sobre o Sertanejo


Arcado sobre a ponte sobre o riacho, sobre o lodo sobre os rochedos, sobre o caminho que leva a água sob as margens sob o vale, sob as vigas sob a ponte, sob Arlindo, o forasteiro sertanejo, o espelho diante da luta, atrás de labuta, lado a lado com a franqueza, abaixo da riqueza da realeza, da tristeza da avareza, da beleza de ser livre em definir o próprio destino impróprio, inócuo, incrédulo com as paisagens artificiais, irracionais, imateriais do seu povo sem futuro, sem orgulho, sem reflexo, arcado sobre a ponte, diante do horizonte, menos belo que ontem, caminhara sobre a água, sobre o lodo sobre os rochedos, sobre o caminho que não leva para casa, nem a lugar algum, a não ser ao próprio arco, ensimesmado sobre o ego, sobre o elo sobre sua existência sobre a terra, sobre o sertão sob seus pés, sobre a ponte sobre o riacho, sobre o “diacho!” diante do arco esticado com a flecha de Arlindo.

sábado, 9 de março de 2013

Sofisma


Era sábado quando a garota abriu os olhos e enxergou a claridade fria daquela tarde de maio. Havia dormido por três meses, pelo menos era o que sentia. Percebera então, que sentia, aliás, a felicidade de uma joaninha que acabara de escalar a roseira, antes gigante, e alcançara, entre espinhos e desequilíbrios, a flor prometida e cheirosa, no cume da sua ambição. Completude e medo, como se olhasse do Everest para o todo. Um ângulo sublime, da felicidade plena, do olhar a refletir, nas emergentes lágrimas de orgulho, a paisagem que sempre sonhara em vislumbrar. Ela continuava deitada em um jardim desconhecido, que lhe abrigou as angústias da noite anterior, quando os sonhos chegaram em forma de amor sem tessitura. Momentos entregues aos seus instintos mais puros, que a escuridão não permitira distinguir, mas que jamais haveriam de ser esquecidos, por um dia sequer, tatuados que foram aos seus sentidos. A gaivota a voar, e contrastar, no límpido céu azul, à concomitância do barulho das ondas, conotava uma proximidade maior do mar que o esperado pela garota. Permaneceu ali, esparramada nas espinhosas rosetas, sofismada pelas joaninhas, constipa pelo vento, a recitar silenciosa no ouvido dos próprios anseios, o quão bela é a vida, quando só, mas amparada, num azulado sábado de maio.