Ao fundo, a playlist no celular era quase inaudível.
Mas seu inconsciente trabalhava. Ela folheava aquelas fotos. Quantas lembranças cabem em uma música. Mais do que em mil
fotografias? Momentos, realizações, sentimentos profundos e únicos. A foto não
revelava, mas à sombra da luz que captara, tocava a melodia dos amados. A mesma
da outra noite, do dia anterior àquela semana passada. Do papel que carregava a
impressão do instantâneo, exalava seu próprio perfume. E o dele. Quantas
memórias carrega uma fragrância? Mais de mil músicas? A pausa entre os acordes
não revelava o cheiro de amor que lhes pertencia: o da terra umedecidas pelo
orvalho das tardes do verão ardido, em novembro.
Quantas lembranças
caberiam naquela música, que de repente ela ouvia. O inconsciente ainda
trabalhava. O instinto tomava a liberdade do reconhecimento do que era seu.
Era seu. A música soava um réquiem dos seus sentimentos mais nobres, que até
aquele dia, antes do ontem que passara, viviam do pulsar infindável de dois
corações unidos por memórias que hão de jamais esquecer novamente.
Folheava aquelas
fotos. Quantas lembranças formam um sorriso? Mil lembranças continham-no, o mesmo que jamais imaginava tão logo cessar. Pela sinceridade: nada
daquelas fotos lhe dizia coisa alguma. À playlist ressoavam gotas
que já não eram de orvalho, mas molhavam a terra sob os mini-pés que ele
adoravam massagear.
A quente brisa forte soprou
carinhosamente os volumosos cabelos morenos. Obrigados, raios de sol invadiam a
retina do olho grande, que se franzia pequenino. Quantos romances cabem num por
do sol? O horizonte belo, ao meio já no relento, desfocava, submergia sob outra
maré de lágrimas que subia para relembrar: ele se fora. A milésima quarta gota
salgada caía sobre sua perna, deslizava pelo joelho e formava um rio marrom
sobre a cor do pecado, até cair num pedaço de papel lilás.
Papel lilás? De
quantas cores se forma a memória da cor preferida? As francesinhas nas unhas
arranharam a camada de poeira, a catar o papelote e matar a curiosidade
daqueles olhos. O inconsciente continuava a trabalhar. Cuidadosamente dobrado.
Nada além de quatro palavras. Escritas à mão. Quantas lembranças carregam uma
caligrafia? “Nosso sonho”, dizia a primeira linha. “Encontre-me”, dizia a
segunda.
E quantos sustos carregam uma lembrança? Curioso, o sol insistia em não se por no horizonte. Curiosa,
a lua cheia já se espreitava a leste. O celular voltou à mão. Na playlist, um
rock esloveno dava o tom da insólita cena: fotos ao chão, dedos sujos a secar as lágrimas,
um sorriso nervoso ensaiava sua redenção. Correu a casa adentro. A
cachorrinha adestrada desistiu do ladrar diante daqueles passos violentos que
cortaram o corredor.
Diante da porta do
quarto, parou. Puxou o cartaz do AC/DC com força, as fitas adesivas cederam, sem
rasgar o papel. No verso, o envelope. Nele, uma chave... Aliás, haveria de estar
ali! Um uivo instantaneamente transformado em berro cortou a casa. Era
felicidade. Enquanto corria novamente, em sentido contrário, lágrimas rebrotavam-lhe dos olhos grandes. Eram
transparentes. As lágrimas. Não os olhos. Eram cristalinas, puras a lavar a
alma da pequena morena. Pés descalços rasgavam o corredor. A cachorrinha
adestrada pulou, aprontou-se para o latido... Tarde demais. A porta de vidro bateu
forte.
À penumbra do quintal misturava-se
o cheiro de orvalho. Deles. O celular tocava a música. Deles. Pés
descalços sentiam a grama gelada, enquanto, no peito, abalos sísmicos incontínuos
embalavam todo seu ser com ondas de alegria. Jogou-se à grama. Puxou a alça do
alçapão secreto. Escorregou pelo tubo de pole dance, como se fora uma veterana
do corpo de bombeiros. Puxou o celular. Vamos. Vamos! App de lanterna. Os dedos
molhados de suor escorregavam pela tela de vidro. Pronto. “Deseja adquirir
este aplicativo?”. A luz acendeu-se. E seu coração parou.
Quantas lembranças
trazem uma amnésia? Levou as duas mãos à boca. Anos mais tarde, diante do
pelotão de fuzilamento, ela havia de lembrar-se daquele momento macabro. Seus
olhos brilhavam por ele estar ali. Sua boca tremia por ele estar ali. Seu
coração disparava por ele estar ali. Apenas sua mente. Ah, aquela que contém a
memória. Esta encontrava-se em tela azul. E o inconsciente trabalhava.
Correu ao encontro do
amado e beijou-o como nunca, não sem antes lhe tirar a mordaça. Depois
abraçou-o com todo o seu ser, não sem antes desvencilhar-lhe as mãos das algemas. Ajudou-o a
levantar-se vagarosamente, não sem antes desatar suas pernas do arame farpado. E
permaneceram ali, assim, parados, abraçados, o celular caído a iluminar um
ponto embolorado no teto e a preencher o restante do ambiente com aquela melodia.
A música deles. Até que, enfim, de súbito e não mais que subitamente, suas
vozes quebraram o silêncio com um berro uníssono que ecoou por toda a vizinhança:
Jägermeister nunca mais(ter)!!!
E a cachorrinha, em pé na porta de vidro, enfim, teve motivos para ladrar.
E a cachorrinha, em pé na porta de vidro, enfim, teve motivos para ladrar.
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