quarta-feira, 15 de julho de 2015

Entre Macondo e Rios*


Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco, em que o sinal da Sky se pôs a falhar em pleno domingo e compôs a cara de convalescentes dos torcedores de futebol, que logo se acostumaram a interpretar as pausas de transmissão como anúncios de cinco segundos no YouTube. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Sul mandava tornados que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações.

A própria calamidade ia inspirando defesas contra o tédio. Não fosse por esse apodrecimento das ruas que nada teriam tido de asfaltadas para alguém que não estivesse doente de antipódico, e Fernanda não teria se importado com a chuva, porque afinal de contas toda a sua vida tinha sido como se estivesse chovendo.

Não modificou as rotas nem navegou os rios e nem os lagos, que de tanto trasbordar formaram três cachoeiras voluptuosas de concorrência ao São Francisco pelos vales do Jordão, uma para cada fronteira.

Aureliano Segundo viu-se a si mesmo nos espelhos e sua pele verde pelas algas não deixava dúvidas que a Sanepar já não separava aquelas águas das dos esgotos, tampouco nela adicionava a antiga e extinta vitamina D. Demorou três meses em pé, descalço no banheiro, para se decidir em sentir cãibras no lugar de orgulho, sono no lugar de vaidade e labirintite no lugar de pasta de dente.

Tardiamente preocupado, Aureliano Segundo jogou na cabeça um pedaço de oleado e alarmou-se com o estado das ruas. Já jorravam 852mm de águas celestes naquele terceiro mês de maio desde a última estiagem quando ele pôs-se a dirigir entre buracos e lamaçais. O ruim era que a chuva atrapalhava tudo e sua Amarok brotava em bromélias por entre as engrenagens se não fosse lubrificada de três em três dias, e se enferrujavam os metais dos celulares, e nasciam algas de açafrão nas botas de couro molhado. Demorou-se duas semanas para transcorrer cinco quilômetros e decidiu por utilizar os meios fluviais. 

A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas dos Guarios e sair pelas janelas dos J.Araújos, navegando no ar entre os assentos. A Árvore de Maio erguida no centro da praça havia dois outonos ao som e danças típicas suábias, lançava suas raízes crescentes sob a Praça Nova Pátria e renascia esplendorosa em uma aglutinação enxertada de eucalipto com araucária. Tardou poucos dias para Úrsula descobrir que o pinhão fruto daquela aberração não só era comestível como o hálito dos seus devoradores espantava pernilongos.

Aureliano Segundo voltou para casa com seus baús, cinco meses depois de navegar e desbravar cada légua dos Rios Jordão e Pinhão com sua pick-up Volkswagen, convencido de que o governo estava esperando estiar para preencher as grutas que se multiplicavam nas vias estaduais.

- Encontrei o centro da terra, seguindo um dos buracos depois da colina de Jordãozinho – murmurou – O magma é mais quente do que aqui, mas a chuva também já o arrefeceu.

Com a mesa da sala de estar ainda suspensa sobre tijolos e as cadeiras colocadas sobre tábuas para que os comensais não molhassem os pés, Fernanda continuava servindo com toalhas de linho e louça alemã. Mas quanto mais folga o Governo dava às urgências domésticas, mais intensa ia se fazendo a indignação de Fernanda, até que seus protestos eventuais, as queixas pouco frequentes transbordaram numa tormenta incontida, desatada, que começou certa manhã como um monótono bordão de um acordeon e que à medida que avançava o dia foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido.

Richa não tomou conhecimento da ladainha até o dia seguinte depois do café quando se sentiu aturdido por um zumbido fluindo mais alto que o barulho da chuva e era Fernanda em passeata com outros cinco mil e oitocentos e quatro indignados, lamentando-se de que os tivessem educado como reis para acabarem numa casa de loucos, chamados de vagabundos, alcoólatras, libertinos, que ficavam de papo para o ar no Facebook esperando que chovesse piche do céu, enquanto ele trocava o gás lacrimogênio vencido e dizia tentar manter à tona um lar preso com alfinetes, e no entanto nunca ninguém lhes dera um bom dia, meu povo, como passou a noite, meu povo?, nem lhes perguntara, mesmo que fosse só por delicadeza, por que estavam tão pálidos nem por que se levantavam com essas olheiras roxas, apesar de não serem ex-BBBs.

Assim foi. Numa sexta-feira, às duas da tarde, conforme o extremo oposto da previsão do Simepar, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo e quase tão fresco como a água, e os buracos foram tapados e não voltou chover durante dez anos.

*Evidentemente baseada na obra-prima de Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão, e transformado em um texto-paródia ao se perceber que simplesmente citar o trecho em momentos de chuvas torrenciais já não era qualquer ideia genial. Versão original disponível no Capítulo 16, página 299 a 308 (da 66a edição, pelo menos).

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