O fim de tarde
continuava quente, enquanto o sol apenas se enrolava, esperando a hora de trocar
de expediente com sua sucessora em nova fase, a lua. O rapaz observava
o espetáculo crepuscular pela janela quanto seu estômago começou a ronronar
estranhamente, despertando a ira da beagle que dormia sob a mesa. Disposto a
testar algo novo para acalmar seus desejos viscerais, digitou, sinicamente,
“receitas fáceis, deliciosas e baratas” no Google. Ironicamente, apareceram fotos
de deliciosas guloseimas intercaladas com imagens em close do inseto que toda
mulher odeia. “Baratas... stupid
Google”, pensou. Encontrou o que procurava: carpaccio
de carne defumada, ao molho de mostarda com mel, alcaparras e rúcula. Descobriu
que não tinha nem metade do que precisava, e resolveu inovar. Enquanto buscava
os ingredientes na dispensa, lembrou-se que esquecera do item essencial.
Na realidade, sabia
que estava em algum lugar daquela cozinha bagunçada e cheia de louça por lavar,
há duas semanas e meia. Disciplina culinária já lhe passava ao largo, o que
dizer, então, da mania de limpeza. Nunca a sentiu, nem sequer a brisa da sua
passagem. Começou a procurar. Entre caixas de ovos e isopor do microondas que
comprara há seis meses, localizou sua cadela a balouçar-se freneticamente,
imaginado que finalmente chegara a vez do manjar. Lodo, ou melhor, ledo engano.
Continuou a varredura. Engatinhando feito o próprio animal de
estimação, já ia desistir quando finalmente topou com a verdade, nua e crua.
Ajoelhado, viu brotar diante da lixeira um líquido preto. Imediatamente seu
semblante recheou-se em rugas. O rio formado por aquele fluído doravante
intragável exalava o cheiro de cada segundo jazido ao sabor do tempo.
Um odor que, imediata
e estranhamente, lhe rendeu uma regressão à sua primeira infância. Memórias
que, ainda há pouco, repousavam em coma induzido, efusivamente delegaram ao
peito a missão de corroer novamente dores saradas. Ignorando as súplicas de sua
beagle, que clamava por uma bisteca light, grelhada ao ponto mais, o homem fora
subitamente levado ao único momento de sua infância paupérrima gravada em alta definição
e som dolby surround 7.1.
Tinha quatro anos. Mais
magro que o potro definhante que cambaleava sob o sol escaldante do agreste
guarapuavano, o piá “mirrentinho” (leia-se mirrado) ajudava seu velho pai a
catar latas no lixão da cidade. Tudo transcorria como sempre naquele fim de
tarde de verão: o vento ventava frio, enquanto o sol ainda esquentava
inclemente a terra do Cacique Guairacá, quando subitamente começou a chover.
Como sempre, ele quis correr para se abrigar das gotas gélidas, mas o pai
ordenou que levantasse a cabeça aos céus e agradecesse, orando em direção ao
arco-íris que se formava de vereda, em frente às nuvens repletas de tons de
cinza.
Quando concluiu o agradecimento,
viu o seu pai com os olhos marejados. “É que choveu bem na minha vista, filho.
Já é ruim, isso”, tentou disfarçar. Mas ao perceber o ceticismo do piá, apontou
para um clarão em meio aos destroços do cotidiano urbano. Como se fora uma
miragem, uma flor de ipê amarelo vertia do deserto de lixo. “Isso é um milagre,
meu filho”, gritou o pai. “Busca ela pra mim, vamos!”, ordenou. Ao se
aproximar, o piá percebeu se tratar de uma flor de plástico. Conhecedor do pai
que tinha, resolveu inovar. Logo ao lado, encontrou um belo vidro verde, alto, de
quatro lados arredondados. Era o mais belo que já havia visto em um lixão.
“Colheu” a flor dos dejetos, limpou na calça imunda e colocou-a dentro do
vidro. Com sorriso faceiro, braços esticados à frente, retornou e entregou o
presente ao pai.
Xucro que só ele, logo
viu de longe que a flor era irreal e, cansado dos desapontamentos da vida,
jogou o mimo ao chão. Ativo que era, o piá correu para juntar os destroços do
coração amargurado do seu velho. Primeiro, abraçou-o. Depois, foi atrás da flor inanimada de ipê. Contudo, ao chegar “de apar” do vidro, sua visão congelou
sobre o líquido preto que haveria de lhe regredir àquele momento, 25 anos mais
tarde. Ao longo do rio que vertia do frasco esverdeado, moscas jurássicas apoderavam-se
de um inexeqüível cheiro azedo e intragável. “Isso já é gostoso, piá do céu”,
disse o velho pai. Percebendo a expressão pré-descarrego gástrico do seu filho,
foi logo explicando. “No meu tempo de piá, trabalhei num restaurante italiano.
Pense num lugar bom de comer. Lá, sobre cada uma das mesas, havia um vidro
desses. Igualzinho”, relatou. “Mas como alguém conseguia comer um troço desses,
paiê?”, perguntou o piá. “Largue mão de ser burro, filho. Isso aí é um tipo de
vinagre. Diz que é vinagre ‘balsame’, ‘balsâmio’, coisa assim... Loco de bom.
Um dia, quando a gente estiver melhor de vida, vou comprar pra você provar”.
Incrédulo, o piá segurou na mão estendida do pai, levantou-se e seguiu-o no
caminho para casa.
Ao aterrissar
novamente no presente, percebeu a besteira que estava fazendo. Chamou o
restaurante chique da cidade e pediu dois pratos de carpaccio para viagem. Vestiu o tênis, pegou a chave, esqueceu o dinheiro, pendurou na
conta a melhor garrafa de aceto
balsâmico, e acionou seu celular. “Oi pai. Quer jantar comigo? O quê? Mas é
claro que minha cozinha está limpa! Como assim, você duvida?! Tudo bem, pai.
Estou chegando aí!”. Voltou para casa, jogou a bisteca light no potinho da
beagle, olhou para aquela cozinha imunda e ficou pensativo. Resolveu inovar. Pegou
o carro, passou no restaurante e depois pela praça. Colheu uma flor de ipê amarelo
e colocou-a, carinhosamente, no vidro velho de vinagre balsâmico que encontrara
caído atrás da lixeira da sua cozinha. Partiu para o jantar italiano na casa do
seu pai. Louco de faceiro.
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