sábado, 21 de agosto de 2010

E se alguém te contasse...

... um história desta forma?*

Eu tinha uma amiga que era irmã de um guerrilheiro de Tito, que atuava na região na qual eu morava, na antiga Iugoslávia. Certo dia, ela avisou que eles passariam na minha aldeia para fazer uma revista na manhã seguinte. Pai e eu pegamos o que tínhamos de mais precioso e enterramos perto de uma manjedoura de vacas. Usamos uma caixa grande, resistente, anteriormente utilizada para o transporte dos nossos pertences quando viemos do Brasil, na época em que meu pai vendeu terreno e casa para voltar à Europa, mas acabou surpreendido pelo início da Guerra.

Foi nesta época (pré-guerra) que conheci meu marido, infelizmente ele morreu no campo de batalha. E resolvi costurar para fora, inclusive os enxovais das minhas amigas. Aliás, eu tinha uma amiga, que era irmã de um dos guerrilheiros. E ela nos avisou a tempo de o pai e eu pegarmos a nossa preciosidade e enterrá-la perto de uma manjedoura. Por dez meses deixamo-na enterrada, para tirarmo-na de lá apenas um dia antes de fugirmos para a Áustria. A preciosidade permaneceu intacta, com exceção da madeira que sofreu com a umidade. Mas, mesmo hoje, jamais a trocaria pelo melhor carro do mundo.

Ganhei-a quando tinha 12 anos, da minha mãe. Fiz um curso por três anos para aprender a usá-la. Quando voltamos para a Europa, eu tinha 15 anos. Meu pai quis vender nosso terreno e casa por um valor alto e depois retornar para comprar outro, mais barato. Mas fomos surpreendidos pela guerra. Então conheci meu marido e deixei claro a ele: só caso contigo, se me prometer que voltaremos ao Brasil. Mas foi ele quem não retornou da guerra. Comecei a costurar para fora com a mesma máquina de costura com que fiz meu enxoval.

Tinha dois filhos para criar e consegui um dinheirinho com os enxovais que fazia para amigas. Uma delas, por sinal, salvou minha vida. O irmão dela era guerrilheiro de Tito e ela sabia: no dia seguinte fariam uma varredura na aldeia. Com ajuda do meu pai, enterramos minha máquina de costura. Só a desenterrei dez meses depois e nunca mais a pintei, nem lixei. Não a trocaria nem pelo melhor carro do mundo. E olha que dirijo há quarenta anos! Tenho um Gol, há uma década. Antes, tive uma Brasília, por 19 anos e meio, que comprei depois de ter meu Fusca, por dois anos e dois meses.

Cuido muito bem das minhas coisas, tenho muito ciúme delas. Eu tinha 12 anos quando ganhei minha máquina de costura. Morávamos próximos de uma fábrica da Singer, em São Paulo, para onde nos mudamos quando eu tinha 5 anos. Quando completei 12, convenci minha mãe a comprar uma máquina Singer para mim e fiz um curso de três anos para bordar e costurar. Levei-a junto quanto fui para a Europa. Fiz o meu próprio enxoval com ajuda dela, mas meu marido morreu na guerra, deixando-me com dois filhos. Quando voltamos ao Brasil na década de 50, minha máquina de costura veio comigo. Estamos juntas há quase 75 anos. Hoje tenho netos, bisnetos e até tataranetos. São minha fortaleza. Mas nenhum deles encosta na minha máquina de costura. Tenho muito ciúme dela. Ganhei-a quanto tinha 12 anos. Não a troco pelo melhor carro do mundo, essa minha “velhinha”, minha “preciosidade”. Somos duas velhinhas, afinal, tenho 86 anos. E olha que eu tinha 12 anos quando ganhei minha máquina de costura Singer...

*Baseada em fatos reais (alguns dados foram alterados).

PS: há quem saiba contar bem uma história, mas mais difícil é existir quem queira entendê-la nos mínimos detalhes.

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